sábado, 31 de março de 2018

Diga-me, afinal, o que representa a Soberania?


Soberania sempre foi considerada uma palavra feminina... 

Em alguns dicionários, definida como substantivo feminino, designativo de qualidade ou condição de soberana, ou seja, dotada de poder ou autoridade máxima, em face da qual inexiste contraponto...

Aliás, não apenas no português, mas em boa parte da literatura estrangeira, trata-se de um atributo feminino, usualmente ligado à mitologia nobiliária, monarquia e, sobretudo, ao PODER

Em outro momento no blog tive oportunidade de escrever a respeito, basta checar na postagem A soberania e o rei, onde abordo o reconhecimento da liberdade a condição imprescindível para a simetria do Casal Sagrado e o equilíbrio de forças (polaridade masculino e feminino):
"Eis o sentido de uma relação livre em sua origem, que não traz mácula de usurpação, pois cada qual, sabendo de si, pode oferecer ao outro o que tem de melhor"
Basta folhear os contos arturianos para perceber que a perda da fertilidade dos vastos campos de Camelot estava diretamente vinculada à expressão do amor sentido por Arthur em relação à Guinevere, cujo coração foi abalroado por Lancelot, esfacelando, pois, a soberania do reinado do nobre monarca. 

Ou, ainda, a potestade de Viviene, Senhora de Avalon, Rainha e sacerdotisa que orienta Morgana em sua iniciação nos segredos da Ilha mágica. Morgana, Morgause, Igraine, todas grandes mulheres de poder. 

Por outro lado, o mito do Rei-pescador (muitas vezes confundido com a própria saga de Arthur em sua etapa final de vida) que tem sua terra tornada infértil pela perda da soberania igualmente nos coloca a refletir sobre o vital papel e a arraigada conexão existente entre FEMININO, SOBERANIA e TERRA

A soberania sempre atraiu a atenção dos romanos em sua saga expansionista, o bastante para que eles retratassem as províncias como figuras belas, representadas por mulheres. Aliás, daí vem a expressão tida por machista: "conquistar a mulher", tal qual fincar uma bandeira no solo fecundo para dela se assenhorar. 

No texto A experiência imperialista romana: teorias e práticas, Mendes, Bustamante e Davidson analisam os processos interativos elaborados como uma forma hegemônica de ingresso do Império Romano nos lugares onde deitou estacas, a exemplo da Britannia e África. 

O projeto da pax romana nada mais era do que um expansionismo cultivado na derrocada da soberania dos povos ditos bárbaros (ou seja, todos que não erma romanos), por intermédio de uma política geno e etnocida sem precedentes, o bastante para que hoje, séculos depois, estejamos em pleno retorno do bumerangue, imersas em lutas por nacionalismos e identidades usurpadas pelo colonizador.

Boudicca, neste sentido, foi uma rainha iceni que fortemente lutou para manter intacta sua soberania em face da agressividade misógina de Nero, que só descansou quando Suetônio, depois de muita força, conseguiu derrotar a rainha ruiva, não sem provocar nela a ira que, em último gesto, evitou o deleite de Nero, o Louco: tomou veneno para não ser feita prisioneira de Roma.

Por onde quer que investiguemos, a história esta cheia de mulheres fortes, plenas e soberanas (Elizabeth, Cleópatra, Hipátia, Catarina etc.), que exerciam poder com honra, retidão e dignidade, buscando a preservação da alma impoluta, mesmo diante do grande desafio em coexistir num mundo basicamente instruído por homens e suas fálicas formas de auto afirmação. 


Mas hoje vou falar de outra rainha celta tão grandiosa quanto Boudicca e fortemente vinculada à SOBERANIA, atributo com o qual nós, celtas e celtíberas, identificamos nossas raízes e nós, mulheres, exercitamos nosso protagonismo de vida. 

Seu nome era Maeve, rainha de Connacht, conhecida por ser inebriante, a partir do nome, livre em suas escolhas e em sua sexualidade, o bastante para ter tido, segundo Quintino, nove maridos e incontáveis amantes, todos cientes de sua posição e do incontrastável poder da soberana (2002, p. 150).

Reza a lenda que o direito celta, dada a igualdade presente nas relações entre homens e mulheres, estabelecia a chefia da família a quem tivesse maior patrimônio. Maeve e um de seus esposos, Ailill, certa feita travam uma discussão sobre seus bens e suas riquezas, ambos desejando se tornar o mais rico da relação. 

Aillil possuía um touro, Finnbennach, tornando-se, com ele, o mais rico e, com isso, provocando Maeve a entrar em guerra contra Ulster para obter outro touro, Donn Cuailgne e, com isso, tornar-se mais rica e chefe do clã. 

Soberana incontrastável...

A partir desse relato a se perder na história, podemos refletir sobre o significado clânico da palavra soberania, sobretudo nas relações domésticas e afetivas travadas entre parceiros e parceiras.

Isso porque os anos de androcentrismo e patriarcado trouxeram a consolidação de um enredo predominantemente masculino na gestão da casa, incumbindo à mulher a subalternidade de um espaço privado de atuação. 

Agora, em plena contemporaneidade, afinal, qual o sentido de igualdade para um casal?

Estaremos num movimento da Nova Era, que apenas "inverte" papéis? 

Penso que a resposta seja um sonoro NÃO, até por experiência própria em enredos afetivos nos quais eu tinha a propriedade do touro. Os séculos de patriarcado não apenas trouxeram a hegemonia masculina, mas a subalternidade feminina nos serviços de gestão, o que, aliás, está em franca mudança.

Mas dizer que o presente marca o alojamento do homem para o serviço doméstico, sensibilização-namasté ou o que o valha, quer seja a pretexto de produzir uma mudança no sistema (a mesma conversa de matrix, ilusão, samsara e outros nomes) não faz, num passe de mágica, desaparecer os tempos de locupletamento emocional que o atavismo masculino produziu em si mesmo, projetando na relação a obscuridade das relações assimétricas. 

Homens emocionalmente atávicos, ainda não desvinculados da forte presença de uma mãe submissa e de um pai castrador e ausente, até mesmo em situação pretérita de violência doméstica: esse é um retrato presente em nossa geração e que precisa de ruptura. 

Neste sentido, o imaginário ainda oscila na saída desse padrão e em sua permanência nele, sem, contudo, espelhar em si o que realmente se faz necessário para se alcançar a soberania: a autonomia diante da vida.

Soberania marca, portanto, uma autonomia em relação ao mundo, em vários aspectos, integrando, sobretudo, o dualismo matéria-espírito (Terra e Fogo), por intermédio da harmonização entre razão e emoção (Ar e Água). Atributos herméticos presentes na ideia de prosperidade que tanto move as pessoas, mas que tão desconhecida é como prática diária de vida. 

Ser soberana e soberano implica o fluir na senda a partir da descoberta de SI, do próprio objetivo de vida (que não é meta material, mas encampa viver na matéria) a partir da clarificação da alma. 

Quando uma pessoa sabe quem é enquanto ALMA, tudo lhe favorece... A estrada se abre à sua frente, o vento sopra morno nas costas, a chuva cai de mansinho sobre os campos. Tudo flui e frutifica, acarretando, assim, a prosperidade que tanto se almeja.

Caso contrário, como dizia Sêneca, "quando um homem não sabe a que porto se destina, vento algum lhe é favorável". Suas terras quedam inférteis, sua vida estagna sem um objetivo, a incredulidade bate à sua porta. O mundo interno perde, enfim, o colorido de vida. 

A perda de sentido do em-si traz fragmentação do EU, acarretando a perda da soberania e, portanto, do sentido de pertencimento ao Todo. Passa-se a desconfiar da vida, a se buscar incessante explicação dogmática para se conseguirem respostas que, a bem da verdade, estão dentro de nós, em nossa soberania.

Por isso soberania é um atributo tão invejado e vampirizado no mundo: algumas pessoas a exercer com abundância. Outras, carentes, tentam buscar nos outros aquilo que falta em seus áridos terrenos. 


Céad mille fáilte!

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