quinta-feira, 19 de abril de 2012

Os Sagrados e os Femininos na expressão plúrima do ecofeminismo crítico



Depois de alguns meses num ostracismo forçado em face da recuperação da minha alma diante da qualificação da tese de doutorado recomponho, enfim, minha psique para me render ao Sagrado Feminino e suas intrínsecas relações com o feminismo e a expressão da sacralidade ancestral. É o retorno ao lar, claro, mas de forma repaginada, com novas perspectivas de diálogo com minha parcela deídica.


Não poderia falar na dimensão sagrada do feminino sem deixar de mencionar a larga contribuição dos trabalhos de ecofeministas de ponta como Ivone Gebara e Vandana Shiva que, a partir da crítica a uma concepção de patriarcado, deixam um espaço fecundo para reflexão.


Tenho muita familiaridade com a obra de Vandana Shiva, em face de uma conexão providencial que esta ativista faz entre o feminino e o sagrado, em boa parte embalada pela cosmogonia hindu e, claro, pela experiência de vida em prol da sustentabilidade que se pauta no localismo como opção para as monoculturas. 


O caminho que faço, contudo, parte por outro viés, na reflexão sobre um ecofeminismo que prestigia uma construção psico-social de identidades distintas em torno das múltiplas experiências do Feminino e do Feminismo que não estão dispostas na reprodução essencialista do usual binário de gênero. Na verdade, entendo ser necessário fazer sempre um lembrete em termos semânticos, para falarmos em Sagrados Femininos (e não em Sagrado Feminino), com a finalidade de não nos esquecer das variadas experiências das mulheres de várias culturas e nichos. 


Daí o modelo celtibero como foco de minha narrativa, na medida em que as experiências celtas reconstruídas anacronicamente na teia mítica de contos e lendas apontam para outras vivências do feminino, qual seja, uma dimensão paritária, onde os espaços público e privado não se posicionavam tão sectarizados entre gêneros. 


Entendo ser essencial partir desse questionamento para se refletir, no âmbito da cosmogonia celta, sobre uma ausência de naturalização de qualidades que seriam alojadas para o ethos feminino (docilidade, submissão e espírito cuidador), marca inerente dos sistemas patriarcais em relação aos quais à própria teoria ecofeminista presta críticas ferrenhas. 


Uma leve leitura de boa parte das odisseias heroicas celtas me induz a creditar nas figuras deídicas uma expressão de honra a um espaço de sacralidade que não necessariamente impele a figura da mulher para uma dimensão de conexão à Natureza por via da apropriação dos conceitos de maternidade e cuidado. 


Basta ver, para tanto, a figura emblemática de Morrighu, a Deusa-guerreira que nada agrega em sua estrutura arquetípica de candura e devoção maternal. Por exemplo bem claro reside em Maeve, a rainha emancipada que se permite o conúbio com vários esposos. Ou, ainda, na própria Cerridwen que, nada obstante seu apelo devocional ao seu filho Afagdhu (ou Morfran), não apresenta a exagerada candura de que se acometem as deusas maternais da cultura greco-romana, muito menos parte do que se tem na mitologia hindu, que se apropria do conceito de feminilidade como epicentro da criação, mas que encobre um universo de alojamento do feminino para um segundo plano, a partir da compactação da experiência do feminino dotada de atributos imutáveis por "ordenação cósmica".


O celta - como boa parte dos reputados "bárbaros" -  tinha no binário público-privado uma noção bem diferente do que o "irmão" latino (fraternidade esta extorquida à fórceps, por meio, claro, do movimento expansionista romano), já que seu sistema de organização política não contemplava uma estreita bifurcação entre o que é interesse comum e interesse privado. Aliás, é bem importante lembrar que a dicotomia público/privado é invenção grega apropriada por Roma quando conquistou também aquele povo.


Dentro disso, basta observar a estrutura clânica celta para se perceber no interesse do grupo a espiral a guiar e motivar as individualidades e, dentro delas, a perda de sentido do binário de espaço masculino versus feminino. As mulheres, afinal, iam para as guerras, lutavam e, com a mesma desenvoltura, relacionavam-se com seus esposos e dividiam papeis, sem que a submissão fosse a marca maior. 


Chamo a atenção, contudo, para a ausência de um ethos de definição das celtas, por sua vez, como detentoras de um inerente e fatal "predisposição" para guerras ou para a lareira, pois isso seria tão essencialista quanto o essencialismo que estou a refletir no ecofeminismo espiritualista do séc. XX/XXI. Ou seja, "ser ou não ser", guerreira ou dadivosa mãe, não era condição inexorável de vida para a experiência de UM feminino, em especial, mas deixa claro para nós, agora, que o feminino não se relaciona a um modus vivendi, mas a uma pluralidade de experiências que hoje, no séc. XXI, fazem com que anacronicamente reconstruamos - num ecofeminismo crítico - a reflexão sobre os papeis da mulher celta. 


Esse "desvio-padrão" de uma cultura totalmente distinta da compreensão que trazemos em torno da essencialização de características é que me faz retomar, a partir daí, às reflexões sobre o Sagrado e o Feminino, contextualizados numa dimensão empírica de vivência do que é sacro em face da insurgência em relação ao enfoque de um ecofeminismo que prestigie a diferença historicamente construída, dentro da qual a mulher é observada no espaço privado. 


Isso resgata a ideia de rediscussão dos espaços e papeis desenvolvidos por homens e mulheres nessas sociedades (celtas), aparentemente díspares do modelo binário que embalou o ecofeminismo espiritualista de cunho cosmogônico ainda patriarcal, pois penso que, a partir daí, poderemos responder à principal crítica ao ecofeminismo: ser essencialista e pressupor que a mulher possui, em seu DNA, uma helicoidal específica e imutável. 


Se fosse assim seria impossível, por determinismo darwiniano, chegarmos ao ponto de reflexão profunda a que chegamos hoje, com a tomada de consciência e de decisão, por parte de nós, MULHERES!



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