terça-feira, 17 de agosto de 2010

A Soberania e o Rei


Conta a lenda que um poderoso rei, certa feita, foi caçar no bosque além dos limites do castelo. Quando atravessava a ponte, viu uma senhora esfarrapada sendo atacada por um homem. Rapidamente o regente desembainhou sua espada e mirou no coração do homem fundo o bastante para atingir mortalmente o coração do algoz, salvando, assim, a senhora da morte.

"Muito grata, meu jovem" - sorriu a velha, sem que em sua boca estivesse estampada a existência de um só dente - "Aquele homem horroroso era um poderoso mago que me mantinha como escrava e, com a morte dele , libertei-me".

"Que bom, minha nobre senhora!"- respondeu o rei de tenra idade - "Agora a senhora poderá seguir o curso de sua vida e seguir em paz", imaginando que, pela idade da anciã, o destino mais próximo seria a morte em paz e com dignidade.

"Ah, sim, vamos, então, direto para seu castelo, onde nos casaremos em grande festa" - replicou a senhora seguida pelo assombro do jovem. "Eu era cativa do mago e reza a profecia que eu seria resgatada pelo rei que deve, depois, despojar-me, ou, caso contrário, a praga da fome e da doença iria abaterão o reino" - explicou a mulher calmamente, observando o semblante de desespero que se formava na face do rei.

"Cumpra-se, então, minha noiva, minha sina. Se for para o bem de meu reino, então que nossas bodas sejam as mais requintadas daqui. Vamos!" - bradou, enlaçando a senhora e cuidadosamente alojando o frágil corpo senil na garupa do cavalo branco.

Antes de o rei e sua noiva chegarem ao reino as notícias já corriam.

Todos olhavam com pavor aquela inusitada cena: um jovem carregando uma senhora com idade para ser sua tataravó. Ninguém acreditou no fato até o rei cruzar os portões e ser saudado por seus súditos, que se entreolhavam, ao mesmo tempo em que acenavam para o monarca.

Foram 9 dias de festa, de acordo com a tradição. Os convivas ainda tentavam se acostumar com a picardia de uma anciã ser consagrada rainha, pois a crença comum era de que o rei iria despojar a jovem princesa do Norte, herdeira dos segredos do povo élfico que outrora habitava ali.

Ao cair da noite, o rei, percebendo o triste desenlace da prima nocte com sua rainha, imbuído de toda a serenidade digna de um filho de Avalon, gentilmente se levantou, saudou o povo, pegando a rainha-anciã pela mão e a conduzindo para o leito real.

Ao chegar ao vestíbulo, a anciã falou para o jovem: "Meu querido esposo, eis nossa noite de núpcias. Fui enfeitiçada pelo mago e, de acordo com o feitiço, o senhor poderá me enxergar jovem pelo dia ou pela noite, quando me transformarei apenas para nosso deleite. O que escolhe? Ter-me linda durante o dia, jazendo com a noite minha senilidade ou tomar-me como sua à noite, permanecendo eu velha e enrugada à luz do Sol?" - indagou a rainha para o nobre e bondoso rei.

Este, compadecido e sábio, olhou ternamente para a senhora anciã e respondeu: "Minha senhora, minha rainha. És plena e senhora de seu destino. Não cabe a mim tal escolha porque és tu quem deve decidir o que de melhor deves fazer. Aceitarei de bom grado o que me permitires realizar, pois me ajoelho diante de sua Soberania e experiência".

De súbito ouviu-se um estampido. Um estrondo ecoou pelo vestíbulo, seguido por luz intensa, que se alastrou pelo quarto e envolveu a anciã.

Momentos depois, para total assombro do rei, exsurgia no lugar dela uma linda mulher, que se aproximou do rei murmurando: "Meu amado, sem saber quebrastes a maldição do mago. Estava condenada a vagar pela terra transmutando-me de moça à anciã até quando um rei de coração leal me permitisse escolher em qual momento do dia gostaria de ser jovem. Hei de ficar assim, jovem, e seguir o destino dos anos, pois o senhor, reconhecendo a Soberania em mim, salvou-me do infortúnio".

Repletos de felicidade, rei e rainha, então, dirigiram-se para o leito e, brindando a Lua, enlaçaram-se em um só coração, vivendo felizes na plenitude da Soberania por muitos e muitos anos.

Qual a moral da história?

Feliz e abençoado o homem que, reconhecendo a Soberania presente na ancestralidade da alma de cada jovem mulher, permite se entregar à ela e cultivar a cumplicidade...
O rei tinha na rainha seu duplo complementar, na dualidade que une homem e mulher em carne, para a consolidação do reino deídico na Terra.
Muitas histórias celtas trazem a demanda de Soberania.
O próprio relato de Arthur, quando descobre a traição de Guinevere, transforma a perda da Soberania (rainha) na necessidade de cura da ferida que nunca sarava, na história da Demanda do Santo Graal, o cálice sagrado que, de fato, nada mais é do que o próprio útero da Deusa, provedora de fecundidade e renovação.
Nesse sentido, a história do Rei Pescador traz a lembrança daquele que está a colher do mar de incontáveis emoções (água) a eternização de captura do peixe (sabedoria) como condição de mantença do reino (de si, de auto-realização).
Assim como Arthur se vê despojado de Soberania, tanto em face de perder a companhia da mãe (anciã), bem como da irmã-amante (Morgana, deusa), sabe e necessita, ao final, cicatrizar a ferida pelo bálsamo que esvai do Graal.
Quando o jovem rei fala para a anciã que é ela quem deve escolher, está reconhecendo na experiência dos anos - uma metáfora para a idade avançada da senhora - os misteriosos segredos do feminino, ligados à terra pela soberania do que é não revelado pela razão.
Ele reconhece a potestade e, dentro disso, queda humilde em face da escolha inerentemente caber à anciã. Ela quem deve decidir seu destino, sendo respeitada por isso independentemente de o resultado agradar o parceiro.
Mesmo diante da primeira exigência da anciã - de ser levada em cortejo para o casamento - a permissão do rei para a anciã escolher veio sem coação ou dor, guiada pelo sentido altruísta do dever que tinha para consigo (pois sendo rei confundia-se com o povo), fruto do coração nobre e sábio, de modo a quebrar o bruxedo do mago.
O bruxo, por outro lado, pretendia usurpar a Soberania para si e, por conta disso, trancou a mulher em uma bruma de maldição perpétua.
Ela vagaria pelos confins naquela configuração - anciã - sem que pudesse vivenciar o estado de alma - jovem alma - que possuía. Outro ponto importante da narrativa, pois enquanto um homem aprisiona emocionalmente a mulher para usurpá-la, o outro liberta.
Um quer espoliar a Soberania.
O outro deseja a liberdade e, por ela ser tão cara, permite à parceira exercê-la. Não se trata de uma 'permissão' em face de exercício de poder, mas sim, de reconhecimento de igualdade no exercício do poder, condição imprescindível para a simetria do Casal Sagrado e, por resultado, o equilíbrio no mundo.
Eis o sentido de uma relação livre em sua origem, que não traz mácula de usurpação, pois cada qual, sabendo de si, pode oferecer ao outro o que tem de melhor.





Nenhum comentário:

Postar um comentário